Curso de água desviada de um rio para mover moinhos ou para irrigar terrenos
Quando se fala de canais de água conhecidos por “Levadas”, o que nos salta de seguida ao pensamento são as famosas levadas que existem na ilha da Madeira, atualmente uma das suas principais atracões turísticas, capaz de oferecer experiência inesquecível a quem as percorra, tanto pelas vistas que proporcionam como pelo contacto direto com a natureza. Mas sabem qual a sua origem?

Neste artigo iremos até Gouviães, uma aldeia situada na beira-alta, mais precisamente no concelho de Tarouca – distrito de Viseu. É la que se situa esta levada, entre outras existentes no mesmo concelho.
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Conteúdos deste artigo
- História
- Construção e evolução da levada
- Inicio da zona irrigada
- Ficha técnica
- Na outra margem
- Cave dos espumantes Murganheira
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Para melhor interpretação da sua localização tenha como referência a ajuda visual que se segue.

As “levadas” são canais de água com um declive suave, criadas com objectivo de levar a água de um lugar onde ela existe em mais abundância, para o outro onde existe escassez, e onde ela pode chegar sem custos acrescidos, excepto os custos originais na construção da levada.

História
Acredita-se que a origem das levadas em Portugal tenham inicio no século XIII na região de Mondim de Basto, estando actualmente disseminadas por outros lugares do país, em particular na Ilha da Madeira. De um modo geral são construídas quase sempre em encostas, e ladeadas por um muro que nos tempos mais antigos era erguido apenas com pedras e terra. Esse muro faz a lateral de um dos seus lados, ao mesmo tempo que serve de percurso pedestre para vários fins, entre eles a manutenção da levada.

Independente do lugar onde ela se encontre, percorrer uma levada é uma viagem cultural e paisagística impressionantes. É ao mesmo tempo uma homenagem ao esforço e ao trabalho árduo dos homens de outros tempos, que com a quase ausência de recursos conseguiram grandes feitos, muitos deles admiráveis.

Sobre a levada que de seguida vou falar desconhece-se a sua data de construção. Actualmente na aldeia não existe ninguém com antiguidade suficiente a quem pudesse perguntar informação a esse respeito, mesmo que aproximada. Sabe-se no entanto que passou por algumas intervenções recentes, uma das quais já do tempo em que Portugal pode usufruir de fundos vindos da Comunidade Económica Europeia.
Construção e evolução
Esta levada tem a sua origem numa represa no rio, a montante em relação à população a que pertence, no limite da freguesia, numa zona muito próxima da fronteira com a freguesia vizinha. Nesta zona o rio corre na horizontal ao longo de aproximadamente 150 metros, ou talvez mais. Essa foi uma mais valia aproveitada pelos homens engenhosos de antigamente que viram ali excelentes condições para construção da dita represa, iria permitir grande acumulação de água durante a noite.

Até à década de 60, esta represa tinha de ser reconstruida todos os anos, num lugar ligeiramente mais abaixo (onde o rio é mais estreito), uma vez que as cheias do rio ao longo do Inverno se encarregavam de demolir tudo. Terá sido nesta altura que sofreu a primeira intervenção, quando a população de regantes que usufrui da levada decide juntar-se com objetivo de construir a represa em definitivo neste lugar, mantendo-se de uns anos para os outros. Recorrendo ao cimento, produto ainda pouco usual na aldeia nesta década, por essa mesma altura foi criada uma estrutura em betão para colocação de uma comporta amovível na saída da represa, que tanto servia para regular o caudal de água na levada, como servia para fechar a represa por completo durante a noite, permitindo o seu enchimento, principalmente nos dias mais secos de Verão, que era quando havia mais escassez de água no rio,… quando havia muitos agricultores a montante a usufruírem do seu caudal.

Com a construção da represa ficaram criadas também condições para uma praia fluvial, que teve o seu auge nas décadas de 80 e 90, usufruindo do enorme rochedo que existe nesta zona no centro do rio para os banhos de sol, e da sombra de ar fresco e puro no amial que existe logo ali ao lado, a jusante do rio, hoje com sinais claros de abandono,… a natureza no seu estado selvagem.



A partir desta levada, recorrendo à picota ou a motores de explosão, existiam algumas terras a nível superior que também usufruíam das suas águas, no entanto a sua principal função era irrigar as terras que se situavam entre a levada e o leito do rio.

Duas centenas de metros abaixo do inicio da levada, foi à duas décadas atrás construída pela EDP uma pequena barragem que alimenta uma central hidroeléctrica a cerca de 3,5 km daqui.

Inicio da zona irrigada
Mais assertivamente do que falo no vídeo, as primeiras terras começavam a pouco mais de 400 metros da sua origem, eram conhecidas por lameiras. Eram socalcos, tal como o são praticamente em toda a sua extensão, onde se dava bem o feijão, a feijoca, a erva da beira e também o milho, embora este ultimo menos prolífico nesta zona. Até aqui a dimensão entre a levada e o rio é diminuta, no solo desta zona quase não existe terra. Em termos de composição arbórea é essencialmente constituído por amieiros e freixos, duas espécies que se dão muito bem à beira dos rios e ribeiros, capazes de se adaptarem à pouca terra que por aqui existe e se enraizarem entre as fendas das rochas, obtendo de ambas a humidade que necessitam à sua sobrevivência. Em termos de vegetação existe por aqui algum tipo de fetos, junça, rabaças, era, e silvas, embora estas ultimas se dêem em qualquer lugar. Havia, e continua a haver por aqui outras espécies de arbustos, mas em quantidade inferior.
A quantidade de terra em algumas zonas das lameiras é pouco diferente, eram 10 ou 15 centímetros de terra em cima das rochas que sustentavam algumas caneiras de milho, quando o vento ou o peso das espigas não as tombava. Tendo em conta a baixa intensidade dos raios solares que por aqui chegavam, as caneiras de milho tinham tendência em crescer mais e ser mais delgadas.

Por aqui nem tudo era mau, desde o ponto “A” e até meio do percurso, apesar do trabalho ser exclusivamente feito à enxada, a paz que se sentia por aqui era incomparável a outros lugares da aldeia, o silencio era apenas interrompido pelo som das quedas de água no rio, e pelo cantar da passarada, entre as espécies principais existia o gaio, a rola brava, o pombo bravo, o melro, e outras espécies de dimensão mais pequena. Embora raramente, algumas vezes avistava-se também uma ave que por aqui se chamava de guarda-rios.
Ao cimo das lameiras passava a levada encosta fora, e sobre uns passadiços em pedra que a atravessava era comum algumas mulheres fazerem deles o seu lavadouro, além de lavarem sempre em agua corrente, por aqui não existia o desassocego que havia nos tanques de lavar junto à fonte de nascente no centro da população.
Cerca de 300 metros mais à frente, aproximadamente a meio do curso da levada o vale vai abrindo. Aos poucos as encostas começam a ser menos íngremes, o que acaba por permitir melhor entrada do sol, permitindo o cultivo de culturas mais diversas.

De referir que nesta zona não existem condições de circulação para os animais que habitualmente ajudam no cultivo das terras. Tudo o que vinha para aqui ou saía daqui era apenas através do esforço humano. No caso dos homens, com a trouxa que apoiavam na cabeça e lhes permitia carregar mais fácil os carregos às costas, (um pouco à semelhança do transporte dos cestos das uvas na região do Douro). No caso das mulheres o “carrego” era quase sempre transportado à cabeça, com um rodilho que elas mesmo faziam para melhor o levarem apoiado, sem se magoarem no couro cabeludo.

Ao longo de toda a levada havia percas de água, a construção por pedras e terra não era estanque, sendo habitual chegar ao fim do seu curso metade da água que entrava no inicio, muitas vezes nem isso! Nos dias mais quentes de Verão, quando todos queriam regar as suas “novidades”, a carência de água era tal que chegaram a existir desacatos apenas possíveis de resolução no posto da GNR. Agora enquanto adulto entendo perfeitamente o jeito autoritário que tinha o comandante da GNR, que na altura em termos de posto militar era um Cabo. Após ambos os desavindos apresentarem a suas teses, em jeito autoritário dizia o comandante: – “Ou vocês se entendem e o assunto morre aqui, pagam só as despesas mínimas que tem a ver com a papelada; ou eu vou ter que vos mandar para o tribunal de Lamego, e aí a coisa vai vos ficar bem mais cara! Por isso vejam la se vos compensa!..” Boa parte das vezes foi o suficiente para a situação ficar sanada, a quezília pela ausência de água para cada um regar a sua parcela não justificava tal desavença, nem tanta despesa, e a carência de então ia além da água, ela fazia parte do orçamento de muitas famílias desse tempo.

Foi na década de 90 que a junta de freguesia e a câmara municipal, num esforço conjunto, organizaram um projecto capaz de conseguir fundos vindos da União Europeia para arranjo da levada em toda a sua extensão, e mais tarde também para pavimentação do cominho de terra que havia na altura, por onde a população fazia o transporte dos seus produtos. A partir dessa data deixou de haver escassez de água na zona principal que esta levada irrigava, (em Torno), onde as terras tinham melhores condições, onde eram mais direitas e mais largas, onde já era possível ir um carro de bois, e mais tarde um tractor,… onde as terras já eram aradas.

Apesar da abundância de água que passou a existir a partir de então, curiosamente a partir dessa data começou a dar-se por aqui o abandono da agricultura, e as terras ou socalcos que enquanto cultivadas pareciam autênticos jardins, estão agora ao abandono, a transformarem-se gradualmente em silvados ou terras de mato, doendo no coração de quem as conheceu de outra forma, de quem conhece a sua história e de quem passou aqui a sua juventude… Por aqui já não se fazem os berrões** aquando as cavadas da terra, nem se houve a gritaria de uns lados para os outros a informar quando A, B ou C tivesse acabado de regar para lhe poder cortar a água. Faz tempo que por aqui deixou de se ver a espécie de “procissão” que se fazia ao fim do dia, pelo caminho de Torno acima, quando as pessoas regressavam às suas casas vindas da ribeira… Embora ainda existam algumas manchas cultivadas, nestas terras, já quase não há vida…
(** Quando o grupo de homens a cavar a terra era numeroso, habitualmente faziam uma algazarra na altura em que bebiam. Entoavam uma cantilena qualquer, algo que durava apenas breves segundos, e que terminava com todos a bater com um uma pedra na pá da enxada. De seguida bebiam.)


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Ficha Técnica:
- Localização: Gouviães, Concelho de Tarouca – Distrito de Viseu
- Tipo de percurso: Circular, com saída no centro da população e retorno ao ponto de origem.
- Extensão do Percurso: 5,5 km (aproximadamente)
- Grau de dificuldade: Médio
- Observações: Este é um percurso não marcado em lugar algum. Foi percorrido pelo autor do blog por conhecer o lugar, uma vez que é natural desta localidade. Alguém que eventualmente se interesse por percorre-lo recomendo os meses de Maio ou Junho.
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Outros locais de interesse nas proximidades
Na outra margem
Na outra margem do rio existe atualmente o Douro Cister Hotel Resort, uma estância hoteleira com vista para a margem de cá, a zona onde se encontra esta levada.

Caves dos espumantes Murganheira
Ainda na margem oposta, um pouco mais acima existem as Caves da Murganheira, onde é produzido o famoso champagne da Murganheira, o espumante, e vinhos de mesa com a designação VQPRD, as mesmas da região ou das encostas do Rio Távora, referidas num outro artigo neste blog, onde esta empresa tem alguma produção vinícola.

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Outras fotos ao longo do percurso:


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